Por Severino Almeida*
Através dos séculos, as mulheres já foram vistas com muita desconfiança na navegação, consideradas inclusive um sinal de mau agouro, quando a bordo se encontravam. A superstição é traço marcante na história da atividade marítima e, no caso em questão, tomou como aliado o preconceito, do qual, aliás, historicamente é igualmente indissociável.
Em tempos obtusos e obscuros o mito cumpria, na verdade, finalidades práticas, quais sejam, melhor adaptação do ambiente naqueles tempos de extrema violência no trabalho no mar; maior garantia da segurança das embarcações lastrada na força física de quem as tripulava e, por extensão servia, ao afastar a mulher, para a sua própria segurança. Afinal, a marcha da humanidade em busca da plena civilidade e do respeito ao próximo – o que inclui o respeito à condição feminina em todas as suas expressões – é um longo e dolorido processo que ainda exige de todos nós os melhores esforços.
Assim, foram necessárias décadas e décadas de conquistas femininas para que o tabu fosse eliminado, e as mulheres pudessem se tornar bem-vindas a bordo não apenas como passageiras, mas também como competentes tripulantes, o que veio a ocorrer gradualmente nos últimos 50 anos.
Hoje, o Brasil pode se orgulhar de ter em sua marinha mercante um contingente cada vez maior de profissionais do sexo feminino. O país é um dos líderes na formação de mulheres como oficiais mercantes – profissionais de nível superior, civil, que tripulam os nossos petroleiros, portacontêineres, graneleiros e embarcações de apoio marítimo.
Das três centenas de oficiais mercantes (ou seja, não militares) que ingressam todo ano nas duas Escolas de Formação mantidas pela Marinha no Pará e no Rio de Janeiro, metade já é de mulheres. O índice por si só já revela a capacidade feminina para vencer obstáculos de igual para igual, sobretudo se considerado que o acesso a essas escolas é feito por meio de rigoroso concurso público de provas. Cabe observar que o curso de quatro anos, até a obtenção do diploma de bacharel em Ciências Náuticas, exige singular empenho.
Mas, para se ter idéia da evolução da presença feminina na profissão, em 1997, na primeira turma a aceitar candidatos a oficiais de ambos os sexos – como resultado da igualdade estabelecida quase dez anos antes pela Constituição Federal e no bojo da abertura iniciada pouco antes na Marinha de Guerra -, dos 70 alunos havia apenas uma mulher. Já em 2000, havia oito mulheres inscritas. Este ano estarão se formando 108, inscritas em 2006.
Como resultado desse bem-vindo processo, que reflete a caminhada das instituições brasileiras na consolidação dos direitos sociais, em junho do ano passado o país teve a sua primeira oficial mercante promovida ao posto de comandante de um petroleiro de grande porte.
Contudo, não obstante as conquistas verificadas até aqui, o país ainda luta contra preconceitos no setor. O principal deles reside no fato de ainda não haver uma legislação específica para a atuação das mulheres mercantes. Reconhecer que as mulheres podem competir em pé de igualdade com os homens no acesso aos postos de trabalho em todos os segmentos, como no caso da marinha mercante, não significa que devamos fechar os olhos às particularidades inerentes ao gênero.
Defender liberdades não implica ignorar diferenças. Há justiça em reconhecer as diferenças e prover tratamento adequado às mesmas.
Mulheres já provaram, no Brasil e no mundo, que são competentes tripulando e comandando navios. Cabe a nós, agora, garantir-lhes condições adequadas de trabalho, compatíveis principalmente com a maternidade, condição própria ao gênero feminino. O ambiente a bordo, com seu distanciamento de terra, seus balanços, caturros e materiais transportados, não é recomendável diante das exigências da gestação e dos cuidados e atenção devidos ao bebê em seus primeiros meses.
A expansão de nossa produção de petróleo, com as reservas do pré-sal, bem como a expansão de nossa navegação de cabotagem, em função de nosso crescimento econômico sustentável, exigirá novas levas de oficiais mercantes, a cada dia mais especializados e qualificados. As mulheres mercantes, oficiais ou não, têm o direito de participarem deste processo. É, ao nosso ver, dever do Estado prover legislação adequada para sua permanência na profissão, sem riscos à gestação. A sociedade organizada engajada na superação de mitos, preconceitos ou tabus relacionadas à condição feminina, não deve descuidar da mulher em seu olhar para o mar.
*Severino Almeida é oficial da marinha mercante e presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Transportes Aquaviários e Aéreos, na Pesca e nos Portos e do Sindicato Nacional dos Oficiais da Marinha Mercante.